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PÉS DE BEBÊ

  • Foto do escritor: Pricilla Maria
    Pricilla Maria
  • 19 de set. de 2019
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de abr. de 2020

Ela não sabia o que havia visto, mas tinha visto alguma coisa.


Engraçado, ela tinha certeza de que estava dormindo, mas mesmo assim a viu.

Tinha alguma coisa na beira de sua cama. Algo escuro: por dentro e por fora. As garras tão finas e afiadas, aparentemente fracas, tinham a força e o corte cirúrgico de uma espada de samurai. E, meu deus, como eram fortes. Poderiam atravessar qualquer coisa - inclusive ossos.


Aquela coisa segurava o pé de Áurea. Ela tinha apenas doze anos. Era uma garota esmirrada e esticada. Seus pés facilmente escorriam para fora da cama, o que sempre a angustiava momentos antes de ela pegar no sono. Mas quando o sono a pegava, seus pés já não eram uma preocupação, visto que agora Áurea existia apenas em sua cabeça, em seus sonhos.


Mas naquele dia ela teve que admitir para si mesma que devia ter insistido aos seus pais por uma cama maior. Eles tiveram que gastar com o berço do seu irmão menor. Ele estava com os pés protegidos àquela hora; aqueles pezinhos ainda tão inúteis - a não ser que você gostasse de babar em cima de pés de bebês, como a maioria dos adultos. Naquele dia Áurea teve que assistir alguma coisa, escura o suficiente para ser sua própria sombra, tentar contra seu pé saudável e perfeitamente apropriado para suas andanças de pré-adolescente. Ela lutaria por aquele pé esquerdo. 


O que quer que o segurasse olhava para ela com olhos do Inferno, vermelhos, profundos. Se você olhasse por muito tempo se sentia cair em um fosso quente, numa vertigem interminável. Aquilo não precisava soltar nenhuma palavra para que Áurea soubesse que só haviam duas possibilidades: ou ela entregava o pé esquerdo ou teria que matar aquilo. Ele não desistiria de levar o que veio buscar.


E neste encara-encara, quando Áurea precisava desviar o olhar de vez em quando para não cair no fosso e perder a consciência e o pé, a criatura começou a apertar seu tornozelo, de modo que ele começou a sangrar. Primeiro um filete de sangue, depois a dor, aquela queimação pontual antes de virar dor excruciante. Áurea chutou a criatura com o outro pé, e percebeu que ela era corpórea. Ela não estava ficando louca. Seu chute acertou o olho da criatura, o que causou uma queimadura na sola de seu pé. Aquela massa escura se enfureceu; começou a cortar mais fundo a carne terna e jovem da pré-adolescente, que ainda nem havia beijado na boca - o que agora era seu maior desejo, depois que conheceu Roberta.


Se aquela criatura veio direto do Inferno, e Áurea achava que sim, Roberta foi um anjo que Deus enviou a ela, e disso tinha completa certeza.


Mas aquela não era hora de pensar e Roberta (ou era?) e ela precisava se livrar daquilo. Lembrou do copo d'água que guardava no criado-mudo. Pegou o copo ainda cheio e lembrou dos filmes de terror que gostava de assistir: fez uma reza concentrada segurando firmemente o copo, passando toda sua fé para o líquido ali dentro. Não tinha certeza de que funcionaria, até que a criatura soltou um berro enlouquecedor quando a água acertou seus olhos de fogo. No susto, ela apertou ainda mais o tornozelo de Áurea, que dessa vez gritou de dor. Ao escutar a dor da menina, a criatura foi calando o seu berro e dando voz para um riso absurdamente insano. Parecia uma risada que saía do fundo da sua alma corrompida, fazendo eco às lamúrias dos condenados ao Inferno. Cada pelo do corpo de Áurea se arrepiou e seu grito de dor foi interrompido subitamente. Ela quase esqueceu o porquê de seu medo.


A criatura voltou a agarrar o pé de Áurea. Quando reabriu os olhos eles estavam em chamas novamente, mas agora azuis. E se antes Áurea conseguia desvencilhar seu olhar das amarras do olhar da criatura, agora não mais. E ela caiu no fosso. O fosso era insuportavelmente quente, e parecia que as chamas tinham o poder de descolar sua pele de seu corpo. A sensação era essa. Mas ela chegou com a pele inteira naquilo que parecia ser um covil.


De repente, aterrissou em um chão cheio de excrementos e sangue. Até mesmo fluídos seminais tinha naquele chão, mas Áurea não teria conhecimento disso, já que não entraria em contato com aquele tipo de fluído por toda a sua vida. Seu pé infeccionou assim que entrou em contato com toda aquela merda e urina, mas isso ela só saberia depois também. Seu tornozelo estava quase da grossura de sua coxa, inchado. Ela só conseguia sentir uma dor lancinante que irradiava por toda sua perna esquerda, como a luz ao redor de um buraco negro que tenta fugir do horizonte de eventos. A dor lhe deu ainda tontura e enjôo, também causado pelo fedor de morte que invadia as narinas pequenas de Áurea.


Ela mal conseguia se apoiar no chão - parecia estar patinando naquela pista de detritos - quando percebeu que as paredes estavam tomadas por pés. Todos, sem exceção, eram de crianças. Pés de vários tamanhos, cores e texturas. Alguns limpinhos, daquelas crianças que passam o dia sentadas no sofá jogando videogame e não se levantam nem para buscar água; alguns sujos e bombardeados por vários quilômetros, daquelas que não encontram casa em lugar nenhum e nem a água tem para buscar. Eram de crianças das maiorzinhas, sabe, dos dez aos treze anos. Adulto já não tem pé que preste, já andou muito, está gasto. Pé de pré-adolescente tem um gosto de curiosidade, de aventura. O sangue tem frescor. Não haviam pés de bebês.


Alguns pés tinham escorrendo de si umas gotinhas de sangue. Os novos, pelo menos. Os mais antigos já estavam escurecidos e o sangue seco. Larvas e um cheiro forte de podridão saía deles aos montes, montando uma orquestra de fedores. Áurea se pegou olhando a cada um detalhadamente. Até que avistou a criatura à sua frente novamente; agora com três metros de altura. Era tão magricela quanto a menina, como se a houvessem passado a ferro quente. Sua garras já estavam indo novamente ao encontro do tornozelo inchado de Áurea e a menina sentiu um frio na espinha apenas de imaginar aquelas unhas cortantes encostando em sua ferida. Tentou se colocar em pé para correr, mas escorregou na mistura de resíduos pútridos do chão e voltou a posição vulnerável em que estava.


De repente, Áurea sentiu o peso de um caminhão em cima de seu peito. A criatura estava em cima dela, e o hálito do lugar era preferível ao que saía da boca daquela coisa; a quentura que ela emanava queimava a pele da menina. Depois de rosnar para sua presa, a criatura pegou Áurea pelos cabelos longos, castanhos e agora cheios de merda, e a jogou para cima, usando a gravidade para puxá-la para baixo. Áurea bateu forte no chão, e logo a criatura já estava segurando de novo seu tornozelo.


A garota, que agora sentia muita dor no braço esquerdo também - possivelmente tinha quebrado - tentou negociar. Eram seus últimos suspiros, agora era difícil respirar. Balbuciando, perguntou o que ela poderia dar em troca de sua vida. A criatura estancou seu movimento e a olhou desconfiada. Áurea repetiu a pergunta e a criatura, aparentemente interessada na oferta, apontou ao longe. Com a visão turva, Áurea divisou um único pé de bebê no lugar. Não estava fresco; estava duro, roxo e com sangue coagulado. Ao olhar novamente para a criatura, conseguiu perceber também saliva que escorria de sua boca. Claro! Não haviam pés de bebês porque eram mais difíceis de conseguir. Bebês se assustam fácil e gritam alto. E os outros pés não lhe serviam como comida, por isso sua magreza. A criatura definhava, enquanto se arranjava comendo pés de pré-adolescentes. 


Áurea sabia o que fazer para se libertar dali. Talvez fosse a coisa mais egoísta que já fizera em sua vida, e com certeza ela ainda anda com esta culpa nas costas, no escuro, aonde quer que ela esteja. Fez sua oferta, e a criatura aceitou.


Áurea estava livre, enquanto via seu irmão, José, se acostumando com o peso, e aprendendo a andar com seus dois pés biônicos.

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