MÉDICOS DE CAMPANHA
- Pricilla Maria
- 10 de nov. de 2019
- 21 min de leitura
1
Foi uma verdadeira luta chegar até aquele lugar; a lama batia no joelho, enquanto uma chuva fraca mas ininterrupta nos recepcionava. Eu só conseguia pedir a Olorum para manter meus pés longe de qualquer mina terrestre que poderia fazer meus pés e pernas voarem longe, arrancados do meu corpo. Naquele momento estava acontecendo a maior guerra que os homens já travaram entre si, na disputa por água, e eu precisava de todos os membros para fazer o trabalho que havia me levado até ali, na Amazônia, o epicentro do combate: eu era médica do SUS e havia sido recrutada - à força - para tratar de feridos que não estavam lutando diretamente nas batalhas, mas que eram atingidos por balas perdidas, minas terrestres, bombas de efeito moral e biológico.
Por muito tempo, olhamos Enceladus como uma esperança, ela é a Lua de Saturno que guarda, embaixo de sua superfície congelada, água e possivelmente vida como conhecemos. Mas finalmente, depois de alguns anos, percebemos que todo o esforço de ir até lá e voltar trazendo a quantidade deste líquido suficiente para matar a sede de todo o mundo se mostrou estupidamente caro e impraticável. Como alguém poderia supor que viajar 1,272 × 10^9 quilômetros até outro planeta poderia sair tão caro, não é mesmo? Imaginem só!
E então, voltamos as vistas para nossa floresta, cuja bacia hidrográfica havia sido continuamente bombardeada pelo descaso de todos, desde governantes até a sociedade civil. Mas agora já era tarde. Ela definhava, e por mais que tentássemos trazê-la de volta à vida ela já não nos dava resposta satisfatória para matar a sede de todos. Os rios precisam das árvores para se alimentar, e vice-versa, e já não havia muitas por ali. Agora havia pastos e plantações enormes que deixavam escorrer nos rios água suja, cheia de detritos de queimadas e agrotóxicos. Então, eles foram se amofinando também, até que sobrou apenas um, o Amazonas. A guerra era travada em toda a sua extensão. Mais de seis mil quilômetros de guerra. É muita guerra. É muita gente morta. Morrer com sede deve ser uma das piores sensações, creio eu. E naquele lugar, era o meu maior medo.
Eu havia chegado a Óbidos, no Pará, um dos poucos campos de batalha que ainda contavam com árvores em pé. A guerra ali era mais do que apenas bombas e tiros. Era preciso ser arisco, inteligente, perspicaz. As árvores poderiam camuflar homens e armas letais e naturais; e elas próprias também lutavam por suas vidas. Volta e meia um galho da grossura de uma perna de um homem adulto e mais afiado do que a língua de um mentiroso atravessava o torso de um soldado, ou um cipó aparecia enrolado e apertado no pescoço de alguém que se escondia, dentro da mata fechada. Essas mortes de causa desconhecida já entravam para as estatísticas oficiais e, inclusive, já eram previstas. Fui alertada sobre elas, para que tomasse cuidado, mas eu duvidava que eu seria um dos alvos destes galhos ou cipós.
Nem eu e nem meu companheiro de viagem e irmão, Lucas. Éramos os dois médicos do SUS e ele se voluntariou para ir comigo assim que recrutadores do AAL — Aliança para o Amazonas Livre — bateram na porta da minha casa e me perguntaram, com armas na mão, se eu não gostaria de me juntar a eles. Diante da única opção que tinha, entrei na van branca que me levou imediatamente, sem deixar que eu me despedisse de minha família ou mesmo que pegasse roupas limpas. Tudo seria arranjado por eles. A única coisa que deu tempo foi de Lucas saltar na van antes que a porta fechasse, dizendo que dois médicos era melhor do que apenas um. Ninguém discordou. E fomos para o meio da floresta fechada, onde a chuva ainda caía e onde trilhas confusas e intricadas nos cansava a cada passo que dávamos.
Além disso, tivemos que esperar três horas por um cessar fogo de dez minutos, para, finalmente, atravessar o rio. O Amazonas estava ali, majestoso. Apesar de toda a sujeira que havia sido depositada nele, sua extensão toda ainda continuava quase intacta. Ele ainda lutava. Atravessando de barco de uma margem a outra, meu irmão e eu deixamos cair algumas lágrimas naquela veia de vida que ainda teimava em se manter pulsando. Nenhuma das duas Alianças que brigavam pelo controle do rio era digna dele. Eu apenas torcia para que no fim, quando todos os homens tivessem se matado entre si, ele ainda estivesse imponente e saudável para recomeçar.
2
Chegamos, enfim, ao acampamento. Cansados, sedentos e famintos. Era proibido, para todos, colher qualquer coisa da floresta para comer, sem antes pedir permissão aos superiores. Nada poderia ser desperdiçado ou usado sem parcimônia. Ninguém sabia quanto tempo aquela guerra duraria. Era preciso racionar a comida, de modo que só conseguimos comer tarde naquele dia, e nos outros também. Banho, então, era raro. Para pessoas amazônidas, acostumadas a tomar, no mínimo, quatro banhos por dia, aquilo já configurava como tortura. Foi difícil se acostumar a um só — isso quando conseguíamos tomá-lo.
Chegamos e fomos diretos vestir as roupas brancas — ou que deveriam ser brancas — e começar a atender pessoas deitadas em esteiras no chão úmido, debaixo de uma tenda enorme. Os pacientes estavam cheios de ataduras manchadas de sangue novo e velho, feridas abertas, soros pendurados de forma improvisada em galhos passando por cateteres sujos e remendados com esparadrapos. Havia, pelo menos, vinte pessoas ali.
Aquilo era uma bagunça só. Lucas e eu nos dividimos em duas tarefas, que alternávamos a cada dia: a limpeza do espaço e o atendimentos dos feridos. Manter a limpeza era essencial, óbvio, mas era uma tarefa quase impossível. A chuva de lama, graças às bombas que explodiam a todo o momento, respingava em nós sem parar. A chuva e o vento se encubiam de levar até a gente resquícios imundos dos conflitos. Não havia banheiros ali, então pode-se imaginar a fossa a céu aberto que era aquele acampamento. Os rejeitos humanos eram concentrados em um canto afastado dos doentes, mas ainda assim o cheiro e alguns respingos deles chegavam sem dificuldade à tenda. Vários doentes ainda vomitavam diante do nojo que era aquela situação, o que causava pelo menos um surto de vômito coletivo a cada três dias.
Mas o pior começou a acontecer depois que o primeiro corpo sumiu durante a noite. Era um dos nossos piores casos. Waldiclei tinha perdido uma perna em uma mina e sangrava sem parar a dois dias. Quando achávamos que ele conseguiria estabilizar, voltava a correr risco de vida. E sua esteira fora junto com ele. Como um homem, à beira da morte, sem uma perna, havia sumido do acampamento sem ninguém perceber? Talvez ele tenha se arrastado. Mas não havia nenhum rastro no chão enlameado que nos levasse a essa conclusão. Ele não tinha se arrastado, ele não tinha caminhado, ou mesmo se escorado nos poucos instrumentos médicos e titubeado até a mata fechada que nos cercava. Essas possibilidades estavam fora de qualquer cogitação.
A procura por Waldiclei ainda se estendeu por mais um dia, mas depois do fracasso na missão só restou aos comandantes do acampamento dar a notícia da morte dele à família. Ele não tinha mais mulher, e os filhos sequer fizeram questão de reclamar o corpo para um funeral. Na verdade, eles pareciam bem aliviados com a morte do pai — e não posso dizer que não os entendo.
Tudo pareceu terminar por ali. Ninguém se preocupou por muito mais tempo. Afinal, era um doente a menos para se preocupar.
3
Exceto Lucas e eu. Nós éramos, e ainda somos, duas pessoas muito sensíveis. Alguns chamam de médiuns; eu também chamo, confesso. Não tenho palavra melhor — embora ache o termo branco demais, se é que me entendem. Mas sendo o médium alguém que está conectado com as forças, energias e seres da natureza e com o Tempo, talvez nós sejamos, assim como os outros médiuns, apenas ouvintes melhores. A ancestralidade grita quase sempre em nossos ouvidos e é preciso estar atento para escutar.
Ali próximo ao acampamento, havia uma samaúma. Suntuosa, de pelo menos trinta metros de altura e dois de diâmetro em sua base. Ela era o ponto de referência para chegarmos ao acampamento. Os combatentes aprenderam também a se comunicar por elas, usando o eco das batidas em seus caules robustos, que se estendia por quilômetros. Então, um código com batidas sequenciais fora inventado para esse fim. Algumas apenas com as palmas das mãos, outras com pedaços de galhos. Pessoas já faziam por muitos anos, décadas, séculos, mas foi preciso uma guerra estourar para que esse tipo de comunicação fosse validada. Afinal, celulares já não tinham a menor utilidade ali naquele lugar. Nem para se comunicar e nem para passar o tempo. O Tempo mesmo passava; ali não era um bom lugar para se estar.
Dentre as batidas dos soldados daquele lugar, Lucas e eu escutávamos batidas diferentes. Não eram batidas com as palmas das mãos, mas com unhas. Unhas afiadas e grandes. Tinha um ritmo de atabaque, ligeiro, e duravam poucos segundos. Imediatamente, nós nos olhávamos e tentávamos descobrir de onde o som levemente agudo vinha. Era um eco firme, claro, diferente dos tapas entrecortados que as mãos humanas davam. Depois de alguns dias, concordamos que as batidas vinham da Samaúma ali perto, e que eram respondidas por outras que habitavam a floresta. Enquanto a chuva que caía torrencialmente, quase sem pausa, atrapalhava a comunicação entre os homens que carregavam armas, comprometendo a audição dos códigos, ela parecia facilitar, através de seus pingos, a passagem das ondas sonoras das unhas tamborilando no tronco das samaúmas. A chuva já tinha tomado partido.
Tinha outra coisa conversando por baixo da chuva, e não era gente. Gente não tinha uma destreza tão boa assim, ou merecia o apoio da chuva. Lucas e eu saímos várias noites atrás dos sons de unhas, ficamos de vigia, mas curiosamente ele só passava pelos nossos ouvidos quando nos distraíamos. E não adiantava fingir estar distraído; gente ou não, quem estava batendo as unhas não era nada besta. Saíamos durante o dia também, para procurar pistas sobre as unhas nas copas das árvores, mas nada de rastro havia sido deixado, nem mesmo um arranhão.
Até que uma noite, dezesseis dias depois do desaparecimento de Waldiclei, Lucas e eu acordamos com passos quase inaudíveis ao redor de nossa tenda. Talvez eles fossem inaudíveis para outras pessoas, pois nem mesmo os comandantes mais bem treinados que haviam ali, ou os soldados de guarda com dosagem absurda de cocaína nas veias, haviam escutado. Apenas nós dois. Nos olhamos assustados e com um sinal de cabeça decidimos sair para ver o que fazia aquele barulho leve de arrastar de pés. Ao contrário dos muitos filmes de terror que havíamos visto, não nos dividimos, permanecemos juntos, assim não teve como duvidarmos do que vimos.
Era uma criatura grande, encorpada, com cabelos de um vermelho infernal saindo de sua cabeça proporcionalmente grande demais para o corpo, que pesava em cima das costas levemente encurvadas. Talvez por isso, toda a musculatura das costas era tonificada e saltava aos olhos, mesmo na quase escuridão total da noite na mata fechada. Mas o que realmente se divisava naquele breu eram as suas unhas. Unhas antigas, maduras, que pareciam estar no mundo a mais tempo que a própria criatura. Eram grandes, disformes e esverdeadas. Lascas de madeira, talvez das copas das Samaúmas, estavam presas a elas. Eram elas que faziam aquele som agudo que entrava pelos nossos ouvidos e deixava um rastro de pelos eriçados ao longo de nossa espinha. Assim que ela saiu de nosso campo de visão voltamos a deitar em nossas esteiras, com medo.
A criatura rondava a tenda em movimentos anti-horários, era possível escutar. Parava em alguns pontos, cheirava profundamente os corpos ali perto e continuava a andar. Procurava alguma coisa e supus que fosse o doente que estava em pior estado. Talvez ele fosse reconhecido pelo cheiro de podridão que exalava pela pele. E então aquele braço musculoso e lodoso começou a puxar lentamente uma das esteiras que ficava em um dos cantos da tenda. Era a esteira de Bianca, uma garotinha que havia chegado no acampamento na tarde do dia anterior, cheia de feridas abertas causadas por bombas de efeito biológico, carregadas de bactérias que consumiam a carne saudável à sua volta e deixava para trás restos de células mortas. Não era contagiosa, por sorte, mas acabava com o hospedeiro em poucos dias. Bianca era forte, mas o cheiro de podridão de sua carne a sentenciou mais cedo.
Lucas e eu vimos aquilo com horror, mas não podíamos ter feito nada. Enquanto a criatura puxava o corpo da menina, nos olhava fixamente com os olhos também vermelhos, em chamas. Não tinha pálpebras, apesar dos traços humanóides, então não piscava. Ela poderia sustentar aquele olhar pro resto de nossas vidas. Sem tirar os olhos de nós, enrolou Bianca em sua esteira, tirou o cateter de sua veia, cuidadosamente, e saiu em direção a Samaúma. Naquela noite, não ouvimos bater de unhas nas árvores e nem gritos de garotinha nenhuma.
4
A procura por Bianca durou alguns dias. Isso se deu por causa de seu pai desesperado, que jurou de morte quem quer que houvesse levado sua criança e que não descansaria até encontrá-la. Reinava arrancar a cabeça do desgraçado com seu terçado. Mal sabia o infeliz que, desnutrido pela fome que a guerra traz, não teria a menor chance contra aquela criatura que Lucas e eu acordamos ser uma Caipora, uma protetora das matas.
Os esforços do homem não duraram muito diante da chuva que teimava em cair cada vez mais forte. Já estávamos a uma semana com chuvas incessantes, o que dificultava qualquer atividade, desde buscar alimento até ir ao “banheiro”, a poucos metros do acampamento. O lugar foi ficando cada vez mais frio e úmido, e os doentes foram piorando consideravelmente durante os dias. Isso fez com que a Caipora que havíamos visto, e outras, nos visitasse com cada vez mais frequência. Conseguíamos diferenciar uma da outra pela cor das unhas, quanto mais escuras mais velha a Caipora parecia ser, e mais ranzinza também. Nenhuma delas foi simpática conosco, exatamente, mas a mais velha que vimos conseguia comprimir a energia ao nosso redor tão intensamente que tive que vomitar o que tinha e o que não tinha comido naquele dia. Lucas desmaiou.
Agora, nós sabíamos quando uma delas viria: o som das unhas grandes e afiadas contra as Samaúmas ecoavam em nossos ouvidos no final da tarde. Elas pareciam avisar umas às outras que naquela noite haveria o que fazer. Uma coisa que notamos, entretanto, é que mesmo que quase toda noite pelo menos um corpo fosse levado, as Caiporas pareciam estar mais magras, definhando, doentes, e mais raivosas também. Chegamos ao ponto em que dois corpos sumiam por noite, e mesmo assim, elas continuavam insatisfeitas.
As chuvas não paravam, a lama tomava conta de tudo, o cheiro que impregnava o ar era de podridão das chagas dos doentes misturada com a terra lodosa. Quase já não saíamos do acampamento e começamos a nos preocupar com nossa própria saúde. Lucas começou a inspecionar nossas roupas e sapatos todos os dias, e em uma dessas inspeções descobrimos uma ferida aberta em meu tornozelo, que até então eu não havia percebido. Nossas galochas passavam muito tempo sujas e molhadas e nossas meias já não existiam desde nossa primeira semana ali. Ele limpou a ferida, que era simples e inofensiva, e colocou um curativo para evitar que sujasse. Improvisou uma meia com gazes e pediu que eu evitasse de pisar no chão ou colocar o pé dentro da galocha até que a ferida secasse. Óbvio que o plano não deu certo. Em menos de uma hora eu já estava com o pé descalço no chão, levando uma bronca do meu irmão mais novo. Mas era inevitável, era preciso trocar soro, fazer curativos, limpar feridas e passar a mão nas costas daqueles que vomitavam no chão.
Dois dias depois comecei a sentir o pé latejar dentro da galocha. No começo era apenas desconfortável, mas depois as coisas pioraram: veio o pus, a infecção. Lucas se desesperou. Já fantasiou que eu seria a próxima a ser levada pelas Caiporas naquela noite. Um exagero, claro. Naquela noite não, mas era preciso cuidar daquilo, imediatamente.
5
E então o nível do rio começou a aumentar. Havia dois meses que estávamos naquele acampamento, e ainda não havia parado de chover. Era uma chuva oscilante; ora mais forte, ora mais fraca. Mas contínua. A lama fez a floresta virar quase um pântano, e comecei a imaginar terra encharcada consumindo aqueles corpos mortos na guerra, esquecidos e putrefatos, se decompondo lentamente, sendo corroídos por cada pingo d’água que caía sobre eles. A floresta estava virando um cemitério enorme, de quase sete mil quilômetros de extensão. De uma forma não tão bonita, a floresta estava se alimentando.
Enquanto isso, meu tornozelo piorava e eu já começava a mancar visivelmente. Ainda tentei disfarçar a dor para que Lucas não se preocupasse, mas obviamente ele percebeu minha piora quando em uma das assepsias viu que o pus escorria da ferida e a região em volta dela estava do tamanho de uma maçã. Àquele ponto, não mais conseguia usar a galocha e meu irmão improvisou uma tala de folhas e galhos para que eu não pisasse diretamente no chão. Os doentes pioravam e eu não poderia me dar ao luxo de passar o dia sentada enquanto Lucas cuidava deles.
O clima estava tão úmido que a sensação, ao respirar, era de quase afogamento. Nada mais parava seco ou limpo. O lodo foi crescendo no acampamento e dali a pouco até a água potável estava contaminada. Apesar de tanta água caindo do céu, em cima de nossas cabeças, a sede veio. Começamos a racionar água, e então tudo virou um caos completo. Já não havia água para beber, para a limpeza, ou mesmo para o banho. Comida agora eram apenas as frutas que ainda não haviam sido colhidas na região. E elas também já estavam no fim; era preciso andar bem mais longe para encontrá-las.
Nossos equipamentos também estavam sob a ameaça da chuva constante. Nos restavam poucos medicamentos que não tinham sido terrivelmente afetados por fungos. E nossa estratégia foi usá-los com os pacientes em pior situação, na inútil esperança de que eles melhorassem. Inútil porque ninguém mais melhorava naquele acampamento. Era impossível, dadas aquelas condições. A umidade mantinha todos os microorganismos muito vivos e com comida farta. Vivíamos preocupados com os corpos que poderiam ser levados pelas Caiporas, mas em um dado momento Lucas e eu admitimos que não poderíamos mais lidar com isso. Assim, a atenção dele se virou para o meu calcanhar, cuja ferida já tinha se alastrado até a metade da panturrilha.
Ele usava os comprimidos sem fungos fazendo pastas para passar na minha ferida, me dava sempre as melhores frutas que encontrava em sua colheita, e parte de sua dose diária de água. Eu poderia recusar, e era o que eu queria, mas eu já não conseguia nem sentar, avalie argumentar sobre qualquer coisa. A febre tinha achado meu corpo, e a dor na perna era lancinante. Nenhum remédio para dor era suficiente, nem em altas dosagens, então comecei a pedir por morfina. Passava várias horas dormindo.
Normalmente, sono induzido por medicamentos não nos deixa sonhar, pois não é um sono natural. Então estranhei sonhar com aquela Caipora mais velha. Ela vinha me buscar, com suas unhas negras e cheias de lasca de Samaúma. Ele puxava minha esteira e me olhava profundamente nos olhos ao fazer isso. As chamas naqueles olhos me esquentaram do frio úmido que castigava meu corpo, e por um momento agradeci. Aquela criatura grande e encurvada me enrolou em minha esteira e me colocou em seu colo, me carregando de um jeito quase paternal. Eu sentia que estava indo para casa. Mas comecei a escutar passos que não eram os da Caipora. Acordei assustada e com a respiração forte: era Lucas que voltava de uma caminhada pela mata, em busca de ervas.
Lucas era médium, como eu, mas era um daqueles que tinha muito mais afinidade com ervas e suas propriedades. Era bom em benzer. Filho de Obaluaê, o orixá das doenças, aquele que as leva para longe, havia se desenvolvido nisso. Não raro nós encontrávamos Lucas rezando em cima de seus pacientes. Quer dizer, eu encontrava. Outras pessoas sequer notavam qualquer coisa. O tempo do benzimento, da reza, é outro — é o tempo que leva para que sua energia cruzar o tecido tempo-espaço até o corpo de outra pessoa, limpando todas as mazelas que estão ali, com o acuro de todo o conhecimento e desenvolvimento que anos e vidas são capazes de juntar nas palmas das mãos. Muito diferente do tempo que corre entre um plantão e outro em um hospital público, o tempo do imediatismo da morte.
Ele ajoelhou diante de minha esteira e, em um pilão que havia tirado de sua mochila ensopada, começou a macerar as ervas que tinha consigo. Eu não tinha muito conhecimento sobre ervas, mas consegui reconhecer algumas como alamanda, babosa e beldroega. Depois de macerar cantando algum ponto no fundo da garganta, que eu não consegui ouvir, misturou as ervas com um pouco da água da chuva que caía intermitente. A chuva de Nanã, minha mãe.
Cuidadosamente, ele passou a mistura sobre minha perna, e depois rezou em cima dela. O alívio da dor foi quase que imediato. Enquanto Lucas pedia a cura daquela ferida em meu calcanhar, em uma reza contida, com choro e uma firmeza que nunca tinha visto, eu caía no sono. Dessa vez, um sono limpo, sem medicação; dessa vez eu descansaria. Eu queria ter sonhado.
6
Mas não sei quanto tempo passou desde que havia adormecido. Me sentia descansada, e com a perna um pouco menos dolorida. Mas havia algo de estranho: minha esteira estava se movendo para cima, para baixo e pros lados. Minha cabeça, solta do pescoço como ficam as cabeças de pessoas convalescentes, balançava sem controle nenhum. Estava eu flutuando? Busquei Lucas mas não conseguia abrir os olhos. A chuva ainda não havia parado e pingos grossos caíam em meus olhos e nariz. Levantei a cabeça para não me afogar com a chuva e percebi então que eu estava sendo carregada.
Era a Caipora mais velha. Ela me carregava em seu colo em direção a Samaúma. Com medo, comecei a me debater e quase caí, tentei gritar, mas não consegui. A Caipora pareceu nem sentir minha agitação, não expressou nenhuma reação, apenas me olhou diretamente nos olhos e me senti estranhamente segura. Olhei sobre seus ombros e vi Lucas atrás de nós, arfando, atirando pedras nas costas largas da criatura envergada. Meu irmão era mais alto que eu e eu nunca tinha conhecido alguém maior que ele. A Caipora era duas vezes a sua altura, mesmo encurvada. De pronto, aquilo me assustou mas logo senti vontade de rir diante da semelhança que aquela cena tinha com o episódio bíblico de Davi e Golias. Mas, nesse caso, as pedras não faziam nem cócegas no gigante.
Lucas esbravejava vingança para a Caipora mas ela nem mesmo olhava para trás. Parecia programada, concentrada em apenas me levar aonde quer que tivesse que me levar — me senti um pacote de encomenda. Pedi, então, que Lucas tivesse calma e que continuasse a nos seguir. Ele, depois de me perguntar se eu estava ficando doida, deixou catar pedras pelo caminho e arremessar e se concentrou em gastar sua energia andando atrás da criatura, cujo passo dava dois do meu pequeno irmão. Olorum sabia para que precisaríamos dela quando chegássemos a Samaúma, para onde eu sabia que estava sendo levada.
Ao chegarmos a imponente árvore no meio da floresta fechada, a Caipora me deitou aos pés dela, suavemente. O chão ali era sequinho, fresco, e o ar era confortável. Não chovia embaixo daquela copa grandiosa. Parecia estar deitada em minha cama, em casa e lágrimas escorreram pelos meus olhos fechados, de tanta emoção e alívio.
O quase-transe foi quebrado quando Lucas se debruçou sobre mim, e começou a me puxar contra seu corpo. Fiquei sem entender, mas me perdi destes pensamentos quando senti o farfalhar da saia dela, batendo contra o vento. Era ela, Nanã Ajapá, dona dos pântanos, defensora da mata, a que está diretamente ligada a Morte e é enfermeira dos moribundos. Ela estava me levando para dentro da Samaúma; ali eu faria minha passagem, eu conseguia sentir. E que alívio!
Lucas ainda me puxava de volta para ele, sem perceber que o movimento dele não fazia nenhuma diferença no axé que me arrastava em direção à árvore. Ele não via Nanã ali, posta de frente a ele, com sua roupa lilás e branca, e seu ibiri azul. Nunca havia visto lágrimas tão grossas cair por aquele rosto cravejado de acnes. Por um momento me desesperei, mas imaginei que ela cuidaria dele assim que eu me fosse. Quando atravessei para dentro da Samaúma, senti um deleite que há muito houvera sentido. Era paz, cura, crescimento — me sentia em um completo estado de evolução.
Quando abri os olhos novamente estava de pé, com a perna curada, como nova. Testei os passos e vi que mancava sobre a perna dantes doente, mas sem dor, apenas um cacoete que deve ter ficado na memória do corpo. Olhei ao meu redor e me dei conta de que ali dentro, no oco da árvore, havia espaço para umas dez pessoas, frutas diversas e maduras e algumas quartinhas de água. Aquilo era o Orun? Ou eu estava aguardando alguma coisa?
Olhei para fora, por frestas pequenas na casca da árvore, e vi Lucas dando socos nela, inutilmente. Nanã ainda estava ali fora, o rosto coberto por seu adê lilás, paramentado com búzios. Em um movimento de seu ibiri, fez toda a chuva parar, instantaneamente. E finalmente o barulho da mata se fez ouvir: alguns pássaros tímidos, as folhas das árvores dançando com o vento e aquelas unhas, batendo firmemente contra o caule das Samaúmas. O barulho foi crescendo, se acertando, até que virou uma sinfonia de sons agudos e sincopados, como uma marcha militar. Lucas parou, por um momento, de se debater no caule da árvore e prestou atenção na música como uma criança desvia sua atenção de, forma ingênua, para um objeto voador.
À frente da Samaúma foi se formando, à medida em que a marcha crescia, um batalhão de Caiporas. Jovens, velhas, e algumas que considerei, inclusive, crianças. De longe parecia que a mata estava pegando fogo, com todos aqueles cabelos vermelhos, em chamas. Elas não pareciam nada amigáveis. Eram mais de cem Caiporas, todas em posição de combate. Elas estavam ali para lutar pela floresta. E Nanã Ajapá era sua comandante.
Começaram a bater marcha em direção ao nosso acampamento. Lucas, embasbacado que estava com aquele exército, se voltou novamente, com esforço, a socar a árvore, e uma das Caiporas notou sua presença. Sem que meu irmão percebesse, ela veio em sua direção com as unhas afiadas e tentou desferir um golpe contra ele em um movimento mais rápido do que uma piscada. Não sei de onde ele tirou reflexo para desviar do golpe, mas assim o fez e caiu no chão, atordoado, porém ainda com um arranhão no rosto feito pelas unhas incisivas da criatura. E antes que a Caipora pudesse tentar contra ele novamente, minha garganta, agora hidratada, gritou:
— Salubá, Nanã Ajapá! Salubá, Iabá!
Nanã, que estava apenas observando o ataque da criatura se virou para mim, devagar. Ela é temida. É a que anda pelo lodo, pela lama, a que trabalha na linha tênue entre a vida e a morte. Mas é minha mãe, eu precisava rogar a ela.
— Ele é meu irmão, minha mãe. Eu rogo pela vida dele! Ele fez questão de vir até aqui comigo. Não me abandonou! Deixe que ele se junte a mim, eu peço, minha Yá!
Ela apenas levantou a cabeça e pareceu crescer mais de metro, de repente. Olhou para a Caipora e eu completei:
— Ele é filho de seu filho, Obaluaê. Eu sou sua filha. Ele é meu filho também.
Ela sustentou o olhar da Caipora, que sem mais nem menos fez uma saudação com a cabeça e saiu correndo apressada para alcançar suas companheiras que já havia abrido marcha.
Nanã fez mais um movimento com seu ibiri e abriu um vão na casca da árvore, que fez Lucas atravessar e cair quase aos meus pés, dentro da Samaúma. Nos abraçamos e choramos por um tempo, até que Nanã surgiu em nossa frente. Lucas se ajoelhou diante dela e ela me levantou em um abraço forte e reconfortante. Desmontei em choro e de novo, me senti em casa. Ela era minha casa. Desfizemos o abraço e ela colocou levemente a mão na cabeça de Lucas, que tremeu diante do toque dela. E ela foi-se dali, tinha um exército para comandar.
7
Passamos três dias dentro da Samaúma. Meu pé não voltou a doer e o mal estar no corpo havia ido embora. Lucas também se sentia melhor, principalmente depois de comer bem e beber água limpa. Nossas roupas finalmente secaram e o calor que entrava pelas frestas da Samaúma devolvia-nos a saúde que nos faltava. Estávamos muito bem secos, alimentados e sem sede, mas do lado de fora da árvore as coisas iam mal: ouvimos vários gritos durante esses dias, bem como a correria, e o desespero de pessoas que, aos poucos, foram diminuindo em número. A cada dia parecia que o silêncio tomava conta da floresta, antes barulhenta por causa das bombas e tiros que os homens infligiam inutilmente contra as Caiporas.
Depois deste tempo abrigados, fomos surpreendidos por uma Caipora bem mais jovem. Em termos humanos, eu diria que ela tinha uns doze ou treze anos. Era mais sorridente que as outras que já havíamos visto, com os olhos e a cabeça ainda pequenos e ainda ereta. Parecia bem arisca, esperta. A cara era de quem tinha matado vários homens sem levantar um dedo, tramando armadilhas junto com árvores e os últimos animais que ainda restavam. Assim, parecia ter em sua aura um quê de perigoso, portanto, não foi com total confiança que deixamos que ela nos guiasse até a margem do rio, entre a mata fechada.
Não é exagero nenhum dizer que a mata estava repleta de corpos humanos trucidados. A Caipora juvenil saltava sobre eles como se estivesse em uma pista com obstáculos, e se divertia, rindo guturalmente. Eles estavam esquartejados, desfiados e macerados por todos os lados. Combatentes, inocentes ou não, levados à força até ali ou voluntariamente, estavam mortos, alimentando a floresta, o rio. O único resquício que tinha da chuva torrencial que caíra ali eram as gotas que ainda caíam das árvores e a lama ainda pastosa que se misturava ao sangue rico e sacrificial que a floresta precisava para se manter em pé. Pelo menos até que a guerra voltasse àquela região, afinal, ela ainda não tinha cessado.
Conseguimos atravessar a floresta até a margem do rio, onde por coincidência (ou providência) estava atracado o que parecia ser um barco de buscas. A Caipora deu um assobio assim que o avistamos e alguém respondeu de lá, talvez imaginando que quem tivesse assobiado fora um de nós dois. E então, a Caipora sumiu atrás de nós e nunca mais a vimos, além de seu cabelo vermelho se afastando rapidamente dentro da mata. Corremos até o barco e subimos a bordo.
A tripulação se resumia a um homem negro, mais velho, estava todo vestido de branco e que tinha uma calma que destoava completamente do clima de morte que assolava a região. Não haviam outros resgatados e por um minuto minha intuição disse que eles estavam lá apenas para nós. Ele nos agasalhou, nos deu comida e água e redes para dormir. Perguntou se gostaríamos de comer alguma coisa em especial para comer ou beber e diante de nossa resposta negativa nos deixou sozinhos para descansar. Dormi todo o caminho até a terra firme, mas Lucas não. Ele chorou o trajeto todo, o encontrei de olhos inchados.
— Tu não dormiste?, perguntei.
— Não consegui.
— Tem muito carapanã por aqui, né? Mas não tem nem como fugir, estamos perto do mato.
— Carapanã é o de menos. Elas nem me incomodaram.
— Por que estás chorando?
— Tu não notaste o que aconteceu com a gente três dias atrás?, ele perguntou sério.
— Nós sobrevivemos a um ataque de Caiporas. Foi assustador, eu sei.
— Não sobre isso, preta. Sobre a passagem em si para dentro da Samaúma. — Será que eu havia perdido alguma coisa ali?, pensei.
— O que tu queres dizer?
— A guerra abriu um portal, preta, o dos encantados. Lembra quando nosso Babá falava sobre humanos que simplesmente sumiam e se encantavam, que ninguém encontrava seus corpos nem vestígios de seu desaparecimento? Pois é, todas aquelas caiporas, tudo que vimos, todos encantados. O portal era aquela Samaúma! Nós passamos para o outro lado, nós somos encantados agora. E o homem que nos trouxe para dentro desse barco é um médium. Agora nossa missão é aqui do outro lado. Agora, não somos mais os médiuns, somos as entidades.
— Tu estás ficando doido! Precisas dormir!
— Eu não estou ficando doido. Foi Nanã quem me disse.
E nesse momento dona Nanã Ajapá surgiu no nosso barco, na proa. Lucas se ajoelhou novamente e ela veio até mim. Pela primeira vez em anos eu vi o rosto de minha mãe por baixo de adê: uma preta velha que parecia ter todas as rugas do Tempo e ainda assim uma docilidade nos olhos escuros, cabelos brancos e uma boca marcada de quem fumava a mais tempo do que se podia contar. Com suas mãos enrugadas, cheias de sulcos que lembravam os rios que estávamos cruzando, tocou minha testa e vi a luz de Aruanda. Eu era uma encantada.
E então, estou aqui. Vó Preta de Óbidos, filha de Nanã. Vim da terra dos encantados para trabalhar neste terreiro. Salve suas forças e Salve a Senhora do Lodo e da Chuva. Salubá, Nanã Ajapá, a senhora que me encantou!
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