AMORES
- Pricilla Maria
- 1 de out. de 2019
- 6 min de leitura
Foi assustador ver como ele se fora tão simplesmente, como sua vida se esvaiu tão facilmente: num momento estava agonizando em meus braços, no outro parou de respirar tão abruptamente quanto quando o botão de pause é acionado, congelando a imagem na nossa frente.
A vida com ele não tinha sido fácil, mas eu o amava. Quando digo que não fora fácil, não me remeto a problemas financeiros, ou mesmo sentimentais, me refiro ao aspecto físico. Dias de surra, seguidos de dias de completo desprezo e em alguns até algum carinho, mas muito raros e rápidos seguidos quase que imediatamente de mais surra. Mas eu o amava. Colocava seu jantar, fazia seus pratos favoritos com a perfeição do artista que quer deixar seu nome na história, lavava suas roupas, as passava, limpava a casa e a mim mesma com o máximo de cuidado e carinho. É claro que dali a pouco estaria tudo destruído, a casa e eu mesma, mas eu o amava. Ele não tinha problemas de alcoolismo, ou qualquer outra droga, nunca soube de qualquer traição, muito embora isso seja possível, ou problemas com a mãe – as pessoas não precisam de um passado violento para se tornarem violentas, algumas apenas o são por natureza e ele era uma delas. Mas fazer o quê? O escolhi e tinha que ser fiel a minha escolha, por isso eu o amava.
Morávamos na periferia de uma cidade pequena, com ruas estreitas, e casas umas em cima das outras, amontoadas. A paisagem normalmente tinha cor de tijolo, porque quase nenhuma das casas tinha reboco e pintura. Os telhados eram baixos, o que fazia com que calor do tempo quente e úmido apenas piorasse, e a rua sem nenhum asfalto levantava poeira a cada passo que dávamos. Eu, particularmente, gostava do que via quando abria a janela, porque apesar de tudo ali viviam pessoas boas e carinhosas, e elas eram meu foco de vista porque o que é a paisagem mais linda do mundo sem as pessoas ali para a completarem? Para a admirarem, ou mesmo a ignorarem?
A nossa casa não era muito diferente desse padrão, mas nós éramos. Ao contrário da maioria das pessoas que viviam ali, tínhamos tido a oportunidade de estudar além do Ensino Médio, porém a graduação na melhor universidade pública do estado não nos tinha garantido boa vida. E quem disse que garante, não é? Vivíamos dos bicos esporádicos que conseguíamos; eu com aulas de reforço para as crianças com baixo rendimento escolar, com horas/aula bem abaixo do que normalmente cobraria, para manter os alunos frequentes, e ele como moto-taxista no bairro. Isso era o que nos alimentava, a nós e aos nossos dois filhos: um de dois anos e outro, mais velho, de dez. Ele normalmente não batia nos garotos, porque eram garotos, mas se eles aprontassem lá estava o cinturão a postos. Resumindo, não tínhamos um banquete todos os dias – na verdade, nunca tivemos – mas nos dávamos ao luxo de um bolo, ou um pudim, algumas vezes.
Eu mantinha a nossa pequena casa arrumada o máximo possível. Era assim que ele gostava, e foi assim que passei a gostar que ela ficasse. Nada como o hábito para nos fazer mudar as ideias. A casa tinha quatro cômodos, com uma sala, uma cozinha, e dois quartos, além de um banheirinho também. Com exceção do banheiro, todos os outros cômodos tinham piso de cimento e, juntando-se isso à poeira da rua, fazia com que nosso lar fosse bem empoeirado e precisasse de uma limpeza mais profunda todo dia. Começava a limpá-lo de manhã cedo e depois de duas horas já era necessário um pano molhado nas coisas. Difícil de manter, mas meu marido não percebia isso, acredito, pois se chegasse para almoçar e visse qualquer ponto branco na raque da sala, eu levaria uma tapa bem forte, para não deixar que isso acontecesse novamente. É claro que eu, por mais que tentasse, quase sempre parecia desobediente, pois nem sempre os grãos de poeira são invisíveis.
Quando ele chegava em casa, não era apenas um grão de poeira que me fazia levar uma tapa. Comida com demais tempero, com menos tempero, banheiro sujo, roupas fora de lugar, qualquer coisa fora de sua ordem era motivo de surra. Até mesmo a calcinha usada erradamente no dia era motivo de correção física, afinal, como todo bom homem controlador e possessivo, até mesmo minhas roupas eram minunciosamente avaliadas antes de entrar no guarda-roupa. Nunca reclamei, ele tinha bom gosto.
Neste dia ele havia chegado em casa apenas às sete da noite – não havia ido almoçar, o que era estranho. Chegou e teve que comer comida requentada, como dizia, pois eu tinha apenas guardado sua porção do almoço e não feito a janta, para que ele comesse fresquinha. Achei que não havia problema, mas pensando bem havia, sim. Comecei a levar as tapas noturnas bem cedo aquela noite: foram duas tapas no rosto, e um soco no estômago, que me fez vomitar o mingau de aveia que tomara naquela noite. Mais um empurrão pelo vômito – sabia que devia tê-lo engolido. Depois de limpar o vômito do chão e de tomar um banho para limpar o sangue do rosto fui sentar-me com ele na sala, na frente da televisão. Como os meninos deitavam cedo – pelo menos teoricamente – às nove horas estávamos sozinhos no cômodo e ele pediu, primeiro com carinho, inclusive com um beijo, que eu lhe fizesse um boquete. Disse que minha garganta estava doída por ter vomitado e pedi com carinho que deixasse para o outro dia. Outro movimento em falso da noite e me custou um puxão de cabelo. Quando me dei conta já estava de boca aberta com seu pau dentro dela. Sorte que já tinha vomitado o mingau, porque assim não teria mais o que vomitar enquanto o chupava, o que provavelmente teria acontecido, já que a brutalidade e força impostas a minha garganta foram muito grandes, principalmente perto do orgasmo dele, quando pensei em minha cabeça como um bloco de concreto que é quebrado com uma britadeira.
Depois disso, era a hora de irmos para a cama. Fomos, eu com resignação, pois a essa altura da noite eu já não arriscaria nenhum outro movimento em falso. Nosso sexo, como sempre, era para ele. Dois gozos, um em cada orifício, e pronto: vira e dorme. Eu ainda tinha que tomar banho, e esperar o seu sêmen descer de mim, para poder dormir. Muitas vezes também sangrava, mas o sangramento acabava no outro dia. Quase todo dia era assim, com exceção dos dias de desprezo, quando ele nem me olhava e, enfim, eu tinha uma folga. Esperava por esses dias como os mendigos na fila pelo sopão, ávidos por um alívio. No caso deles, no estômago; no meu, na alma.
O que mudou nesse dia foi justamente o meu deitar, porque não dormi imediatamente. Fiquei pensando, e pensei muito. Principalmente em pessoas que acreditam tanto que o controle está em suas mãos que quando ele se vai a pessoa perde tudo. Tudo. E foi assim que me levantei da cama, no meio da noite e do sono alto dele, fui até a cozinha, bebi água, e peguei a faca que tinha afiado naquela manhã. Fui para o quarto e enquanto ele dormia a sono solto, ainda com o pau do lado de fora do short, passei a lâmina em seu pescoço. O sangue começou a escorrer como o leite condensado vai escorrendo quando abrimos a lata, e sua boca e olhos se abriram imediatamente – os olhos em busca de quem fazia aquilo com ele e a boca em busca de oxigênio. Ou de socorro. Só que seu único socorro era eu, sua obediente mulher, porém não estava em condições de socorrer ninguém naquele momento, infelizmente.
Ele ainda agonizou por alguns instantes, provavelmente querendo saber o porquê daquilo, ou apenas surpreso, ou tentando pedir desculpas por tudo que tinha me feito, tentando reverter a situação, mas era tarde demais. Passei meus braços pela sua nuca, sorrindo para ele, e depois de um tempo ele apagou completamente e só lhe sobrou uma expressão abobalhada no rosto e seu sangue na cama. Ele tinha perdido o controle por algumas horas, e tinha perdido tudo. E como não conseguiria viver assim, lhe poupei mais sofrimento. Não o matei por raiva ou mágoa, mas por amor. Ele tinha um jeito estranho de amar, e eu também.
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