Mormaço
- Pricilla Maria
- 17 de ago. de 2020
- 16 min de leitura
Escrito em parceria com Willians Matos.
1
Sentou-se.
E, finalmente, tirou os pés da água.
Eles doíam há muito tempo, e quando foram retirados daquele líquido sujo e lamacento, quase suspiraram de alívio, mas como não tinham nariz ou boca para isso, os pés, então, deixaram o suspiro para o organismo maior do qual faziam parte. Já lhes bastava carregar o peso de um corpo quase morto, cansado e debilitado, ainda mais submersos na água escura e imunda que tomou as ruas.
Além das águas, as ruas estavam tomadas também pelo fedor. Toda sorte de dejetos, excrementos e poluição estava misturada aos rios amazônicos que, um belo dia, começaram a escorrer para fora da Amazônia. A “sorte” foi que, à época em que as chuvas começaram, apenas os rios da Amazônia ainda existiam - estavam sem utilidade alguma por causa da sujeira, mas ainda existiam. Se os outros rios, antes espalhados por todo o território brasileiro, também tivessem condições de escorrer, talvez não tivéssemos nem a possibilidade de andar nessa água.
Foram sete anos de chuvas ininterruptas, oscilando entre tempestades e garoas. Hoje não cai um pingo d’água do céu. Nada. Faz sol dezesseis horas por dia - e não é qualquer sol, não! É aquele que, sem dó, faz a bosta das águas cozinhar embaixo de nossos narizes, e que faz nossas peles queimarem, enquanto nossos corpos desidratam a uma velocidade mortal. É esse sol que seguimos aguentando há dois anos.
Então, o Brasil seguia caminho para um clima desértico e fedorento quando ela sentou na calçada, debaixo da sombra de um prédio abandonado. Pela primeira vez em dois dias, ela emergiu seus pés para o mormaço de 40°C. Mas quase não sentiu alívio, pois logo viu que toda a pele que ficou afogada em detritos nos dois dias de caminhada estava muito fina e machucada. Maltratada como estava, precisava de pelo menos uma semana de recuperação até que pudesse colocar os pés novamente na água suja. Frustrada, queria continuar a caminhar, mas aquelas bolhas já estavam esboçando pequenas infecções, que poderiam piorar muito em um tempo muito curto. Em um país submerso em sujeira, manter aquelas feridas limpas seria um grande desafio.
Seu olhar começou a divagar entre a paisagem suja. Percebeu que sua caminhada a levou para uma rua com vários comércios submersos. Ali havia lojas de roupa, supermercados, farmácias; ela mesma estava sentada na calçada do que antes era um banco, mas bancos não tinham aguentado a crise dos alagamentos. Algumas pessoas, nitidamente doentes tomavam conta deles: sentavam-se sobre as bancadas para manter os pés secos, senão usavam botas velhas ou sacolas plásticas para andar entre um corredor e outro checando os estoques. Uma mulher estava sentada à porta de um açougue e amamentava uma criança de alguns meses. A criança levava uma fralda no rosto, para se proteger das moscas que, cansadas da carne podre mal acondicionada no freezer capenga, vinham até ela procurando carne fresca. Essa cena fez a garota lembrar que precisava comer, mas estava sem um tostão sequer, precisava dormir em algum lugar, e para isso tinha menos dinheiro ainda.
Voltou a atenção para seus pés e percebeu uma tira de pele solta na planta de seu pé. Com suas unhas imundas e longas, começou a puxar sem dó, mas com muita dor, a tira. Depois de rasgar alguns centímetros o sangue começou a manchar sua pele alva de vermelho vivo - a cor mais translúcida que haveria naquele cenário de cores cinzentas e opacas. O sangue da menina chamou, então, a atenção de uma mulher que saía do supermercado à sua frente. Teresa, que sempre teve como cor preferida o vermelho.
Do outro lado da rua, a visão de Teresa era a de uma garota de uns quinze anos, magra, com olheiras escuríssimas, das quais brotavam olhos cansados, doloridos e alguma outra coisa que não conseguia ver. Deles escorriam lágrimas de dor, e seus dentes amarelados rangiam uns contra os outros enquanto ela parecia arrancar um pedaço de pele podre de seu pé esquerdo. Suas costas eram achatadas contra uma mochila nitidamente pesada, que fazia com que seus ainda pequenos seios encostassem, sem esforço, na sua barriga. Ela era uma viajante, isso era certeza.
E, então, descobriu o que havia a mais naqueles olhos de menina: era saudade.
2
Olharam-se por alguns instantes arrastados, com dor e surpresa no olhar. Dor, porque as feridas se acumulavam nos corpos daquele tempo, ficando mais profundas e infeccionadas quanto mais se aproximavam da sola dos pés. Surpresa, porque o mundo havia se tornado um lugar demasiado grande para os poucos e alagados sobreviventes, que encontrando-se, sentiam um misto de respeito e desconfiança. As chuvas e alagamentos haviam matado bem menos que a barbárie decorrente do colapso dos estados, das instituições, do pacto civilizatório. Natural, pois, que nesses encontros acidentais as partes se observassem, caladas, e depois seguisse cada um seu rumo incerto; mas Teresa, da pele assada e dos pés cansados, ao ver a menina tão fraca antes as dores inevitáveis de um mundo desfalecido, não resistiu àquele sentimento já sem valia, já perdido dos vocabulários humanos: sentiu pena. Esse tipo de sentimento empático, associado ao remoto Deus dos cristãos, afogou-se com ele nas cheias dos sete anos. Esse Deus que prometia um paraíso em troca da bondade ingênua entre os homens, morreu sem pagar o que lhes devia.
Teresa resistiu à tentação piedosa, dando passos firmes e doloridos à frente, mas ouviu da jovem um suspiro agoniado, virou-se, e a viu cair ajoelhada no chão empoçado, num pranto convulsivo. A tentação foi desta vez mais forte e Teresa logo a socorreu, levantando a menina. Percebeu-se então tomando-a nos braços, acarinhando suavemente sua nuca, e não pôde acreditar que estava envolvida naquele gesto antigo, frágil. Era um abraço. Teresa sentiu-se mãe, e lembrou de um tempo em que haviam filhos, e esses filhos amavam seus pais. Enquanto dava à menina um conforto silencioso, estranho, Teresa aproveitou pra notar mais de perto aquele corpo pequeno, magro, quase esquelético: estava intensamente febril, com constantes espasmos ao longo das costas úmidas, e com pequenas manchas vermelhas pontilhando toda a extensão da parte visível de seu corpo. Teresa não teve dúvida, a jovem sofria de febre tifóide, infecção que ao lado de outras, como desinteria, leptospirose, cólera, se alastrava nos fracos organismos humanos, levando inúmeros jovens a boiar sem vida pelas águas imundas que cobriam as superfícies. Médicos eram seres mitológicos, raramente vistos, e portanto, aquela menina teria apenas mais alguns dias de vida, padecendo cada vez mais de dores musculares, vômitos, diarreia e outros sintomas letais.
- Minha irmã, quero minha irmã - murmurou a jovem.
- Onde ela está? - Perguntou Teresa, decidida em confortar aquela criança à todo custo, pelo bem dela, e pela doce sensação de resgatar em si qualquer resquício de humanidade, de afeto.
A jovem apontou para o norte, onde a superfície sofria um declive em direção à um velho centro urbano, com diversos prédios imersos à metade. Lá, o nível da água era consideravelmente maior, podendo-se caminhar cerca de quatro quilômetros com a água no nível do peito, ou queixo, e dali em diante avançar apenas sobre alguma bóia. Contudo, ninguém pisava por onde a água passasse o nível das coxas. Teresa lembrou-se dos boatos e das visagens relacionadas às Ipupiaras, monstros de tronco humanoide, cabeça próxima a dos crocodilianos, membros largos e calda de peixe, que de lenda amazônica passaram à predadores mais temidos daquelas bandas. Onde o nível da água fosse mais alto, as Ipupiaras sorrateiramente avançavam sobre qualquer vida humana que notassem, devorando-lhes rapidamente os olhos, orelhas, nariz, língua, dedos e genitálias. Era no caminho dessas horrendas criaturas que a jovem apontava o paradeiro de sua irmã.
3
Catarina acordou assustada. Em um pulo, estava de pé, ao lado da cama, respirando forte, com dificuldade. E mais rápido ainda estava no chão, tonta, com a vista escura. Levantou rápido demais e sua pressão arterial não estava lá essas coisas. Teresa, que assistiu ao pequeno surto de Catarina, sentada a seu lado, percebeu que a garota nem sequer se deu conta de sua existência, tão assustada que estava.
- Catarina? - chamou Teresa.
A menina, ainda prostrada no chão, fechou os olhos com força, e procurou a voz da mulher. Sua respiração pesava uma tonelada.
- Catarina, respira menina. Calma!
Aos poucos, a garota se colocou sentada na beira da cama. Percebeu, então, que seus pés estavam secos e que o chão no qual ela pisava também. Há muito tempo não via um chão seco, há pelo menos nove anos. Mal lembrava o que era um chão seco. O piso de cerâmica florida deu aos pés cozidos de Catarina o conforto que eles precisavam, e ela ficou ali, mexendo dedo por dedo, e cada parte do pé sentindo o geladinho da cerâmica. Um sorriso aliviado surgiu em seus lábios secos e Teresa ficou um bom tempo olhando para a menina. Cuidaria dela, estava resolvida.
- Muito obrigada, mas eu preciso ir - Catarina soltou de dentro de seu sorriso e assustou Teresa.
- Você não vai a lugar nenhum hoje.
- Eu preciso achar a minha irmã.
- Então precisa comer e se recuperar antes.
- Eu não tenho tempo pra isso, desculpa!
Quando Catarina tentou se levantar da cama, Teresa a interceptou e a fez sentar de novo. Ela não ia deixar a menina ir embora ainda fraca e doente, depois do trabalho que teve para carregá-la até sua casa. A menina estava esquálida, é verdade, mas outra coisa também o é, e os velhos amazônidas já diziam: osso pesa.
- Sua irmã consegue se virar uns dias a mais sem você, Catarina. Aliás, ela é a mais velha, ela que deveria estar procurando por você! Não o contrário. Onde já se viu? Deixar você sozinha…
- Ela foi procurar comida! - Catarina levantou-se de súbito, mas dessa vez ficou de pé com firmeza. Tinha raiva em seu rosto, e lágrimas.
Teresa percebeu que havia ido longe demais. A menina havia sido deixada à própria sorte, que naquele mundo alagado, era escassa. Ouvir isso deveria doer bem mais do que arrancar a própria sola do pé na unha. Teresa levantou-se e abraçou Catarina calmamente.
- Tudo bem, desculpa. Mas você precisa se recuperar, menina. Você está doente! Se passar mais dois dias nesse inferno aí fora, você morre antes de encontrá-la.
Catarina devolveu o abraço e pareceu aceitar o argumento de Teresa. Morria de medo, mais do que da Morte, de não ver sua irmã novamente.
Já na mesa do café da manhã, Catarina percebeu que estava com as roupas trocadas. E então se lembrou, paulatinamente, enquanto comia, de ser carregada por Teresa e de ter adormecido profundamente em seu colo, de ter sido banhada com água limpa e fresca e de ter sido deitada na cama limpa. Sentiu certo afeto pela mulher que lhe salvara, e agradeceu honestamente.
- Obrigada por cuidar de mim.
Teresa não esperava por aquilo, mas balançou a cabeça agradecendo a gentileza. Catarina começou a esquadrinhar a casa da mulher. E a própria mulher. Era arejada, e por mais incrível que pudesse parecer, o cheiro de esgoto da água não chegava até ali. Erguida sobre a água, um metro acima de seu nível, a casa tinha poucos móveis, o que fazia dela espaçosa, e todos os que tinham eram muito simples. Era uma casa especialmente limpa. Não havia sujeira no chão, ou nas superfícies, louça na pia, ou mesmo roupas sujas pela casa, ou no corpo das duas. Não havia nem mesmo sujeira embaixo das unhas de Teresa; e quando Catarina olhou para as suas, constatou que nem nas delas. A mulher deveria ter limpado enquanto ela dormia.
- Você fez um ótimo trabalho, sua casa é muito bonita - elogiou Catarina.
- Como você sabe que eu que fiz esse trabalho todo? - Teresa ficou muito surpresa com o comentário da menina.
- Pelo cuidado que você tem com ela. Só uma pessoa que saiba quanto trabalho deu para construir seria caprichosa o bastante em sua manutenção. A sujeira corrói tudo agora, e manter limpo é dar mais tempo de vida às coisas.
Por alguns minutos, Teresa não acreditou que a menina tinha apenas quinze anos.
Passaram o dia caladas. Teresa não era de falar muito, e muito menos Catarina. A menina passou o dia aproveitando a cama macia que sua salvadora havia lhe oferecido, se esticando, e sentindo na pele fustigada o carinho dos lençóis limpos. Dormiu novamente, e sonhou com a irmã.
Elas estavam novamente na praia onde se conheceram - ou onde Catarina tem sua primeira lembrança com ela, Roberta. Elas corriam uma atrás da outra, e com Pitó, seu vira-lata caramelo, atrás das duas. Elas saltavam dentro da água e Pitó ia atrás, com sua língua cansada pra fora, bebendo água salgada. Cansadas, se deitaram na areia, consagrando seu amor de irmãs, e tendo o Sol por testemunha. Então Pitó, como bom juiz de paz que era, começou a morder sua perna, com seus dentinhos afiados e cuidadosos. Ela ria, e puxava a perna. Mas se sentiu subindo de volta para a consciência, e percebeu que não era mais Pitó que batia em suas pernas. Aquilo não era bicho, era gente.
Era um homem sujo, com uma pistola na mão, mirando a cara da menina. Mandava Catarina acordar. Na verdade, era bicho sim.
4
Já completamente desperta, Catarina ficou paralisada. O coração disparava, fervia em pânico. Na beira da cama estava um homem da fronte envelhecida e suja, de uma barba volumosa, já quase esbranquiçada, que impedia a leitura de suas feições. Tinha o tronco largo, corpulento e bem coberto de um grande colete em couro sobre a camisa escura. Do joelho abaixo sua calça e botinas eram úmidas, fediam ao mundo de fora, fedor que o dia silencioso e reparador na casa de Teresa haviam feito Catarina omitir das ideias. O cano da pistola foi lentamente encostado ao seu olho esquerdo, enquanto o homem, inclinando seu rosto sinistro para perto dela, inquiriu:
- Cadê a garota, a ladrona?
- Que garota? - Perguntou Catarina, com a boca trêmula e a voz chorosa.
O homem tirou de um bolso sobre o peito, no colete, uma orelha pálida, arrancada de alguma cabeça em um corte preciso. No lóbulo da orelha cintilava sob uma mancha seca de sangue, um pequeno brinco perolado de azul marinho. O homem arrastou o cano da pistola pela pele doente da menina, até o lóbulo de sua orelha esquerda, enfeitado por um brinco idêntico.
- O que você fez com ela? - Catarina chorava, engasgando na própria pergunta. - Cadê minha irmã?
- Foi o que eu te perguntei, sua imbecil - O homem tinha a voz rasgada, envelhecida e grave - Ela tentou roubar minha comida, fugiu, e eu só consegui arrancar esse pedaço dela. Mas eu vou achar aquela vagabunda, e antes de eu terminar de rasgar ela todinha, vou mostrar pra ela o pedaço que também vou arrancar de você!
- Não! - balbuciou uma voz ao fundo - Catarina então notou que atrás do homem, no chão, Teresa estava caída, de bruços, e que da sua nuca escorria uma espessa mancha de sangue, lentamente espalhando-se sobre as flores da cerâmica. - Tem comida aqui, pegue tudo e deixe ela em paz.
O homem grunhiu uma risada curta.
- Nem precisa pedir, mulher, agora fique quieta!
Tudo tinha acontecido muito rápido. Teresa assistia ao sono profundo e esperançoso de Catarina, quando um estrondo na porta tirou o encanto daquela hora. O vulto do homem avançou rapidamente, dando-lhe uma forte pancada na cabeça. Tereza agora não conseguia se mover, estava entre uma improvável negociação, e um desmaio talvez sem volta. Por fim, teve na vista embaçada a cena do velho arrancando um facão da cinta, e serrando covardemente a orelha esquerda de Catarina, que gritava, gritava, até os gritos desaparecem no escuro da inconsciência.
Amanheceu, e Teresa acordou com uma forte dor de cabeça. Em alguns segundos foi recobrando a tragédia das últimas horas, e seus olhos encharcaram em lágrimas. Sentiu cheiro de café. Notou estar sobre o sofá da sala, e não no quarto onde foi golpeada. Da cozinha viu se aproximar seu Valdino, vizinho d’outro lado da rua, trazendo um pedaço de pão quase embolorado, e uma xícara de café.
- Dona Teresa, que bom que acordou! Come aqui, come! - Valdino era um senhor com mais de 70 anos, tinha o corpo magro, curvo, escoriado na pele negra pelas moléstias tantas que lhe atingiram, contudo, sem nunca matá-lo. Seu movimento era trêmulo, como se a cada instante pudesse cair, mas era dono de uma gentileza de fazer qualquer um acreditar que, mesmo no fim do mundo, dias melhores eram possíveis.
- Eu ouvi os gritos na madrugada, Dona Teresa - Valdino continuou - e vi um homem saindo da sua casa, com um saco cheio de coisa roubada. Eu já vi a figura, não presta, é alma condenada. Fareja atrás de qualquer um que lhe zangue, e corta. Assim que ele saiu eu vim e cuidei da sua cabeça, dona Teresa, mas…
- Catarina! Como ela está?!
Teresa estava tonta, levantou-se de súbito e titubeou pelos cômodos até chegar no quarto. Faltou-lhe o ar quando viu sobre a cama empapada de sangue, o corpo inerte e pálido de Catarina. Moscas zumbiam em volta do tímpano exposto, em carne viva, do lado esquerdo do rosto. Nas bochechas descoradas luzia o resquício de seu último pranto. Valdino entrou no quarto e abraçou Teresa, evitando que ela visse mais.
- Eu tentei ajudar ela também, Dona Tê, mas ela já tava muito doente. Ela disse umas coisas confusas, sobre uma irmã, mas também disse ser muito grata à senhora. Desculpa, dona, eu tentei…
Teresa se negava a chorar, porque também sentia raiva. Respirou fundo, agarrou a gola bege de seu Valdino, olhando firme em seus olhos.
- Val, você disse que conhece aquele filho da puta, não disse?! Eu quero ir atrás dele, e eu vou! Quem ele é?!
5
Valdino tentou mas não conseguiu parar Teresa. Ela era muito boa em duas coisas: manter uma casa limpa e se vingar. Nesses casos, todos os seus sentidos afloravam. Ela poderia ver à distâncias a sombra que paira sobre aqueles que carregam a mal-querência em si. Assim sendo, o velho da barba quase esbranquiçada já estava debaixo do radar dela. Seu olfato orientava seus pés dentro da água fétida, e assim ela e Valdino avançavam pela avenida em que havia conhecido Catarina. Ainda podia ver diante de seus olhos os da menina, tristes, famintos e bonitos. Mas não tinha tempo para viver seu luto; faria isso depois de arrancar os olhos do velho barbudo.
A medida que andavam em direção ao ponto em que o nível da água subia, o corpo de Valdino ficava mais retesado. O homem frágil tremia tanto que parecia estar tendo algum AVC súbito. E o tremor era de medo. Seu Valdino era um dos mais entusiastas da ideia de que as Ipupiaras nadavam pelas águas daquelas bandas. Ele era um daqueles velhos que gostava de reunir pessoas à sua volta e contar histórias dos mais variados assuntos: histórias de adolescentes apaixonados, de sofrimento, de conquistas e, majoritariamente, histórias de visagem. Adorava ver nos olhos das pessoas, especialmente nas crianças, aquele brilho assustado e embriagado de curiosidade que seus contos causavam.
Era esse olhar que estava em seu rosto agora, era aquele brilho assustado - mas não estava nada embriagado, ao contrário, nunca esteve tão sóbrio. Contava tanto como as Ipupiaras engoliam suas presas com apenas uma mordida, que agora qualquer coisa que passasse pelas suas canelas lhe deixava tenso, desde um toco de madeira, até uma cauda de alguma criatura que nasceu naquela sujeira. Por muito pouco se contorcia de medo na água, e recebia um olhar bem ríspido de Teresa.
- Desculpa, dona Teresa, mas a senhora sabe como é. A gente não sabe o que tem nessa água. Já pensou se encontramos uma Ipupiara?
Teresa lhe fitou com mais rispidez ainda.
- Isso são histórias que o senhor conta. Só isso. Agora se concentre. O senhor disse que conhece o homem, então fique atento.
- Mas, dona Teresa, a senhora acha que ele realmente iria para dentro desse pântano?
- Sim, tenho certeza de que ele foi por aqui - Teresa disse enquanto abria as narinas para rastrear o cheiro de podre que o assassino de Catarina deixava pelo caminho. E, com seu Valdino ainda tremendo aqui e ali, continuaram seguindo para onde a água era funda demais, com o sol insuportável batendo em seus corpos.
Depois de muita andança, e a água já na altura da cintura, eles viram um volume estranho boiando na água. Parecia um monte de roupa velha, carcomida. E então Valdino alertou:
- Tem sangue ali.
Os dois apertaram o passo o mais rápido que a água lamacenta lhes permitia. Ao chegarem mais perto, viram que o sangue se espalhava por pelo menos dois metros daquele amontoado de pano, que parecia ser a fonte de onde ele jorrava. Ao se aproximarem mais, Teresa percebeu que o sangue ainda estava quente, fresco. Mas foi Valdino que percebeu que:
- Isso não é um amontoado de roupa. Isso é uma pessoa!
Os dois se entreolharam, e todo o sangue fez sentido. Cautelosamente, Teresa virou o corpo que boiava para ver o rosto do defunto. Já sabia quem era, pelo colete de couro que ele vestia e pelo cheiro de alma condenada que ainda exalava dele, mesmo morto. E então viram a barba grisalha coberta de sangue. O rosto ainda era difícil de ver, mas tinham certeza; era o algoz de Catarina. Estava sem um braço, e suas pernas também não estavam junto de seu corpo. Só lhe restava o tronco, um braço e o rosto pálido, com os olhos esbugalhados e a boca aberta em um grito silencioso. No lugar de seus membros arrancados só restavam grandes buracos nas peles, irregulares como se tivessem sido mastigados sem respeito nenhum à dor que isso causava.
O estômago de Teresa revirou. Mesmo querendo vingar a morte de Catarina com suas próprias mãos, não imaginava que alguém pudesse morrer de um jeito tão desfigurante assim. Seu Valdino, entretanto, percebeu que algo na água se mexia e fazia círculo em volta dos dois e do meio-defunto. Começou a tremer violentamente e quando Teresa percebeu que alguma coisa estava errada ali, o monstro cuja existência ela negava saltou fora d’água.
Tinha o corpo humano até a altura da cintura, e de lá uma cauda dourada modelava sua parte peixe. Algumas partes de sua pele descascavam e a carne viva saltava aos olhos. Seu rosto era o próprio inferno, e os olhos, pequenos e negros, como bolas de gude, eram atentos a qualquer movimento. Da boca fedida e de dentes amarelados e pontiagudos, saltava um cheiro de esgoto e carne podre, enquanto um grito ameaçador saía dali. Teresa e Valdino paralisaram não se sabe por quanto tempo. Mas Teresa notou uma coisa: faltava àquela criatura uma das orelhas, enquanto que na outra pendia um pequeno brinco perolado de azul marinho.
6
Teresa e a criatura se fitaram por um longo instante, e os olhares, ambos frios e coléricos, pareciam conversar em segredo. Teresa não recuava, e nem a criatura lhe atacava. Valdino já negociava com a morte o apoucamento da dor, ao mesmo tempo em que silente, orava pelo milagre da sobrevivência. Teresa então puxou pra si o dorso mutilado do assassino, tirando do seu bolso a orelha arrancada de Roberta. Tirou dela o brinco, e diante da Ipupiara, o prendeu à própria orelha direita. Feito esse gesto, carregado de um significado que Valdino desconhecia, outras Ipupiaras se aproximaram e circularam Teresa, fazendo um estranho grunhido sob a água lodosa. Teresa se virou pra Valdino, com um grato sorriso no canto da boca, e antes que o velho pudesse responder com qualquer gesto ou palavra, a mulher foi rapidamente puxada pra dentro d’água, sem resistência, e mais rápido ainda Teresa e as Ipupiaras desapareceram, assim como qualquer ondulação que indicasse o destino ou a espreita das criaturas. De repente, Valdino se viu sozinho, confuso, e estranhamente vivo. Seriam as ipupiaras encarnações monstruosas de moças violentadas, e das moças em vingança? Será que o lodo abençoava as mulheres mortas, dando-lhes o poder de mastigar seus matadores? Teresa havia sido capturada, ou salva? Mas as perguntas de Valdino foram interrompidas por uma brisa fria no rosto, quase agradável, e elevando os olhos até o céu do norte, notou nuvens escuras se reunindo entre rompantes de luz, anunciando, talvez, o retorno das chuvas, e de Deus. Valdino seguiu calmamente o caminho de volta pra casa. Limpou no antebraço as lágrimas que já eram de saudade. Agora, nas raras ocasiões em que lhe pediam para contar histórias sobre as Ipupiaras, e enquanto chuvas finas davam uma calma continuidade ao fim do mundo, Valdino falava de uma que seria sua grande amiga, caprichosa, maternal, mas vingativa amiga. Que onde quer que o nível d’água subisse as coxas, sem dúvida avançaria feroz contra os impiedosos homens daquele tempo.
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